Capítulo
IV - Fabian Thorm
Praticamente todas as pessoas em
Amparo das Almas comentavam sobre o forasteiro terrivelmente deformado que
viera morar na Mansão da Colina. Os velhos da cidade aproveitavam para murmurar
antigas lendas sobre o mal residente naquele casarão - a mais antiga construção
da cidade - e sobre como Satã o usava para invocar demônios, espectros e
abominações.
Alguns lembravam que a bruxa
vampira de roupas aloucadas - mesclando o roxo, o preto e o vermelho - ainda
morava lá, saindo exclusivamente à noite, montada em sua motocicleta infernal,
para libar o sangue dos jovens moderninhos e petulantes demais para dar ouvidos
às "superstições" do povo. Todavia Borkovisk com sua enorme cabeça
torta, suas pernas atrofiadas suspensas anormalmente em ângulos impossíveis e
sua única mão - toda coberta de estranhos ideogramas babilônicos, hieróglifos e
outros padrões estarrecedores - firmemente agarrada ao controle da sua cadeira
hightech fizeram a maior parte da população de Amparo das Almas esquecer a
"Vampira da Casa da Colina".
As poucas fotos que tiveram a
aquiescência de Edmund Borkovisk no decorrer dos anos não eram capazes de
retratar a sensação de absoluto estupor experimentada por sua presença física.
Havia no seu porte tal magnanimidade - como se tomasse assento em um trono e
não em uma cadeira de rodas - que qualquer criatura humana sentia-se
imediatamente inferiorizada diante dele. O homem tinha o semblante de alguém
que subjugava de maneira absoluta todos ao redor de si, como se fosse um tirano
grego ou um imperador romano.
Um dos muitos assistentes do
russo observava a tal "Vampira da Casa da Colina" muito mais perto do
que realmente gostaria, enquanto seu chefe berrava impropérios ao telefone.
Ele, o assistente, não se sentia bem e adoraria poder sentar na aparentemente
confortável poltrona no canto da sala, mas somente a vampira tinha autorização
para tocar em qualquer parte da casa. O moço percebeu que ela parecia faminta e
irritada, dois estados muito perigosos de se observar em um não-morto.
- Não! Eu não aguardarei. -
Borkovisk estava dizendo - Estou no aeroporto embarcando para o Brasil. Avise o
seu patrãozinho, que mais uma vez as suas brincadeirinhas deram em confusão.
Escute muito bem o que eu estou falando. Perdi a paciência que nunca tive! E
vou resolver da minha maneira desta vez.
Dito isso, Borkovisk desligou
violentamente, enquanto sua face deformada se contorcia em um sorriso. O
assistente ficou feliz porque o russo parecia descontraído, mas conteve o
suspiro de alívio ao perceber que era observado por aquele par de olhos
maldosos.
- Relatório! - disse Borkovisk,
combinando ordem e repreensão em uma única palavra.
O auxiliar prontamente entregou
o envelope lacrado, que ele carregara em sua estilosa pasta de couro com
combinação alfa-numérica, empertigando-se
ao lado da vampira.
ao lado da vampira.
- Dispensado - murmurou o russo
enquanto examinava as informações contidas nos documentos que ele espalhara
diante de si na mesa.
Outro sorriso involuntário
aflorou na cara de Borkovisk ao constatar que Marco Antônio não só recebera o
pacote, como se encontrara com Ana Clara no Centro Ecumênico Portador da Luz,
descendo com ela até... Bravuna? Parou a leitura nesse ponto.
Por que acompanhar Ana Clara -
uma completa desconhecida - até Bravuna? O objetivo daquele filhote não era
voltar ao ninho protetor?
Rabiscou alguns símbolos num
bloco como referência, retirando um recorte de jornal - anexo ao relatório -
para ler melhor, com um meneio de reprovação:
"PERIGOSO TRAFICANTE
INTERNADO: Pedro Botelho, perigoso traficante do morro do arcanjo, foi hoje
internado no Asilo Santa Maria (...) Chama pela Srta. Ana Castro (...) grupo de
estudos Underworld."
Interrompeu novamente a leitura
e olhou a porta entreaberta esperando divisar sua "cúmplice"
retornando, mas ela não apareceu. Provavelmente fora se fartar de algum
motoqueiro desavisado ou alguma criança nas redondezas, depois de acompanhar
seu assistente até a porta.
Voltou novamente a atenção para
o relatório, mas já não se concentrava nele. Em sua mente ele via todas as
peças convergirem para a Mansão da Colina: Ana Clara pela ambição, depois que
abrisse aquele pacote; Marco Antônio pelo ódio, quando descobrisse o
presentinho que Borkovisk deixara para ele na fazenda de seu pai e Lucian por
honra, sua dívida seria cobrada no tempo oportuno.
As únicas peças soltas naquele
tabuleiro eram dois peões: Isa, a lamuriante e Valéria "Poison", a
intrusa. A primeira era o único fator incerto e a segunda era um fator
inesperado. Tudo o que Borkovisk precisava fazer era equilibrar a equação e
tudo sairia como o planejado.
Durante todas aquelas décadas
ele jogara com o demônio, seguindo as suas próprias regras, usando mortais e
imortais como peças. No entanto, o russo sentia que aquela ópera se aproximava
do seu clímax, que todos os instrumentos estavam preparados e que ele
finalmente receberia o poder há muito cobiçado.
De súbito, um ruído irritante
como uma estática começou a chiar no fundo da sua mente. No princípio ele a
ignorou, procurando concentrar-se no seu momento de vitória, já planejando seus
próximos passos. Todavia o ruído foi ficando cada vez mais forte até que
Borkovisk sentiu o sangue escorrer pelos seus ouvidos.
Uma dor lancinante tomou seu
corpo deformado forçando-o a se contorcer em uma agonia que ele jamais sentira
na vida. Seu corpo sofria convulsões violentas que ameaçavam jogá-lo para fora
da cadeira, sua cabeça foi jogada para trás num átimo e, estupefato, Borkovisk
viu a conhecida figura do pentagrama formar-se no teto.
- NÃO! - gritou Borkovisk
desesperado - Ainda é cedo demais para se abrirem os selos.
Depois disso, o silêncio tomou
conta do velho casarão da colina.
Alguns minutos depois, a vampira
retornou, só encontrando a cadeira de rodas jogada em um canto da biblioteca.
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