terça-feira, 1 de maio de 2012

CC Persona - Tinta Rubra 2004 - capítulo IV


Capítulo IV - Fabian Thorm

                Praticamente todas as pessoas em Amparo das Almas comentavam sobre o forasteiro terrivelmente deformado que viera morar na Mansão da Colina. Os velhos da cidade aproveitavam para murmurar antigas lendas sobre o mal residente naquele casarão - a mais antiga construção da cidade - e sobre como Satã o usava para invocar demônios, espectros e abominações.
                Alguns lembravam que a bruxa vampira de roupas aloucadas - mesclando o roxo, o preto e o vermelho - ainda morava lá, saindo exclusivamente à noite, montada em sua motocicleta infernal, para libar o sangue dos jovens moderninhos e petulantes demais para dar ouvidos às "superstições" do povo. Todavia Borkovisk com sua enorme cabeça torta, suas pernas atrofiadas suspensas anormalmente em ângulos impossíveis e sua única mão - toda coberta de estranhos ideogramas babilônicos, hieróglifos e outros padrões estarrecedores - firmemente agarrada ao controle da sua cadeira hightech fizeram a maior parte da população de Amparo das Almas esquecer a "Vampira da Casa da Colina".
                As poucas fotos que tiveram a aquiescência de Edmund Borkovisk no decorrer dos anos não eram capazes de retratar a sensação de absoluto estupor experimentada por sua presença física. Havia no seu porte tal magnanimidade - como se tomasse assento em um trono e não em uma cadeira de rodas - que qualquer criatura humana sentia-se imediatamente inferiorizada diante dele. O homem tinha o semblante de alguém que subjugava de maneira absoluta todos ao redor de si, como se fosse um tirano grego ou um imperador romano.
                Um dos muitos assistentes do russo observava a tal "Vampira da Casa da Colina" muito mais perto do que realmente gostaria, enquanto seu chefe berrava impropérios ao telefone. Ele, o assistente, não se sentia bem e adoraria poder sentar na aparentemente confortável poltrona no canto da sala, mas somente a vampira tinha autorização para tocar em qualquer parte da casa. O moço percebeu que ela parecia faminta e irritada, dois estados muito perigosos de se observar em um não-morto.
                - Não! Eu não aguardarei. - Borkovisk estava dizendo - Estou no aeroporto embarcando para o Brasil. Avise o seu patrãozinho, que mais uma vez as suas brincadeirinhas deram em confusão. Escute muito bem o que eu estou falando. Perdi a paciência que nunca tive! E vou resolver da minha maneira desta vez.
                Dito isso, Borkovisk desligou violentamente, enquanto sua face deformada se contorcia em um sorriso. O assistente ficou feliz porque o russo parecia descontraído, mas conteve o suspiro de alívio ao perceber que era observado por aquele par de olhos maldosos.
                - Relatório! - disse Borkovisk, combinando ordem e repreensão em uma única palavra.
                O auxiliar prontamente entregou o envelope lacrado, que ele carregara em sua estilosa pasta de couro com combinação alfa-numérica, empertigando-se
ao lado da vampira.
                - Dispensado - murmurou o russo enquanto examinava as informações contidas nos documentos que ele espalhara diante de si na mesa.
                Outro sorriso involuntário aflorou na cara de Borkovisk ao constatar que Marco Antônio não só recebera o pacote, como se encontrara com Ana Clara no Centro Ecumênico Portador da Luz, descendo com ela até... Bravuna? Parou a leitura nesse ponto.
                Por que acompanhar Ana Clara - uma completa desconhecida - até Bravuna? O objetivo daquele filhote não era voltar ao ninho protetor?
                Rabiscou alguns símbolos num bloco como referência, retirando um recorte de jornal - anexo ao relatório - para ler melhor, com um meneio de reprovação:
                "PERIGOSO TRAFICANTE INTERNADO: Pedro Botelho, perigoso traficante do morro do arcanjo, foi hoje internado no Asilo Santa Maria (...) Chama pela Srta. Ana Castro (...) grupo de estudos Underworld."
                Interrompeu novamente a leitura e olhou a porta entreaberta esperando divisar sua "cúmplice" retornando, mas ela não apareceu. Provavelmente fora se fartar de algum motoqueiro desavisado ou alguma criança nas redondezas, depois de acompanhar seu assistente até a porta.
                Voltou novamente a atenção para o relatório, mas já não se concentrava nele. Em sua mente ele via todas as peças convergirem para a Mansão da Colina: Ana Clara pela ambição, depois que abrisse aquele pacote; Marco Antônio pelo ódio, quando descobrisse o presentinho que Borkovisk deixara para ele na fazenda de seu pai e Lucian por honra, sua dívida seria cobrada no tempo oportuno.
                As únicas peças soltas naquele tabuleiro eram dois peões: Isa, a lamuriante e Valéria "Poison", a intrusa. A primeira era o único fator incerto e a segunda era um fator inesperado. Tudo o que Borkovisk precisava fazer era equilibrar a equação e tudo sairia como o planejado.
                Durante todas aquelas décadas ele jogara com o demônio, seguindo as suas próprias regras, usando mortais e imortais como peças. No entanto, o russo sentia que aquela ópera se aproximava do seu clímax, que todos os instrumentos estavam preparados e que ele finalmente receberia o poder há muito cobiçado.
                De súbito, um ruído irritante como uma estática começou a chiar no fundo da sua mente. No princípio ele a ignorou, procurando concentrar-se no seu momento de vitória, já planejando seus próximos passos. Todavia o ruído foi ficando cada vez mais forte até que Borkovisk sentiu o sangue escorrer pelos seus ouvidos.
                Uma dor lancinante tomou seu corpo deformado forçando-o a se contorcer em uma agonia que ele jamais sentira na vida. Seu corpo sofria convulsões violentas que ameaçavam jogá-lo para fora da cadeira, sua cabeça foi jogada para trás num átimo e, estupefato, Borkovisk viu a conhecida figura do pentagrama formar-se no teto.
                - NÃO! - gritou Borkovisk desesperado - Ainda é cedo demais para se abrirem os selos.
                Depois disso, o silêncio tomou conta do velho casarão da colina.
                Alguns minutos depois, a vampira retornou, só encontrando a cadeira de rodas jogada em um canto da biblioteca.

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