segunda-feira, 14 de maio de 2012

CC Persona - Tinta Rubra 2004 - Capítulo Final


Capítulo VI - Richard Diegues

          Deu uma volta completa ao redor da cadeira, o couro apertado junto ao corpo fazendo um ruído incômodo que era acompanhado pelo dos saltos sobre o piso de linóleo e dos elos da corrente que fazia às vezes de cinto. Valéria olhava o vazio e pensava no quanto se acostumara com a monstruosa presença de Borkovisck. 
          – Eu não gostava dele, mas pelo menos ele desviava um pouco a atenção de mim. – Ela pensou um pouco e completou. – De nós, não é mesmo? 
          Um grande quadro despencou da parede e se espatifou a seus pés, o vidro chegando a atingi-la, mas sem atravessar as botas de couro. 
          – Estamos nervosinhas hoje? – Falou chutando os restos da moldura e ouvindo as paredes rangerem ameaçadoramente. – Já entendi. Não foi você quem deu um jeito no velho, não é? Você gostava dele. Dois deformados caindo aos pedaços. 
          Ela caminhou até a mesa e apanhou a pasta que vira a pouco nas mãos de Edmund. Abriu e virou rapidamente as folhas, lendo cada uma com displicência, até que encontrou a foto de uma garota muito bonita e a anotação à caneta vermelha em russo, que significava “urgente”. Sentiu o piso abaixo de si tremer e chacoalhar e viu que a casa queria lhe dizer algo. Ouviu um ruído conhecido na sala contígua a biblioteca e seguiu para lá. No chão encontrou uma grande adaga e um cordão com um pequeno camafeu pendente. Apanhou o camafeu e ao abri-lo, viu uma foto sem cor e desbotada; um retrato em sépia de uma bela jovem e imediatamente a relacionou com a foto da pasta, abaixo dele estava escrito o nome Natasha. Eram parecidas, mas obviamente não tinham relação direta. Olhou para a adaga e viu que não era decorativa, parecia mais um facão do que uma adaga. Viu o osso entalhado do cabo e mesmo sabendo o que iria acontecer, segurou na empunhadura. Toda vez que apanhava algum objeto que a Mansão lhe dava, acontecia a mesma coisa. Imediatamente várias imagens começaram a passar em sua mente: Lucian, Marco Antônio, Isa, Ana Clara, Edmund, locais e armações. A casa lhe passava as imagens e ela tratava de fazer as ligações, até que por fim viu um pequeno livro e compreendeu o que acontecera. 
          “Porcovisk”, disse cerrando os dentes. 
          Quando se deu conta, estava com a grande adaga enfiada na parte interna da bota e o pulso aplicado em acelerar a sua motocicleta. Não sabia como, mas tinha uma coisa grande para fazer. Pelo que deduzira, era a única peça que ficara esquecida em toda a história. O único marionete de Borkovisc que não tinha as cordas controladas. 
          “Grande erro Porcovisk!”, pensou enquanto sentia o vento no rosto e imprimia uma velocidade maior na motocicleta. 
          Um último punhado de terra foi jogado por Marco Antônio sobre o enorme buraco, e exausto agachou-se sobre os próprios calcanhares, chorando e observando as marcas das quatro sepulturas com a terra recentemente mexida. O pai, um empregado e dois hóspedes da pousada estavam naquelas sepulturas que ele mesmo improvisou. As lagrimas paravam às vezes, mas sempre que a imagem tenebrosa do pai crucificado lhe vinha à mente, tornavam a rolar. Sabia que se não houvesse titubeado tanto em retornar para Cordeirópolis, nada disso teria acontecido. Sentia-se imundo e culpado, mas isso não era o pior. A dor maior vinha do fato de não saber quem era o responsável por aquela terrível aberração. O pai fora dependurado em uma cruz e teve os órgãos extirpados, o sangue fora drenado e utilizado para escrever palavras desconexas e pintar estranhos símbolos em vários locais da propriedade. Em suas entranhas um estranho anel fora deixado e se desfez ao ser tocado. Não sabia que tipo de magia era aquela, mas sabia que deveria haver alguma ligação entre ele e a morte dolorosa de seu pai. O inferno parecia que abria as portas para engoli-lo e sentia-se pronto para entrar. 
         – O inferno não é para nós meu querido. – Falou uma voz trêmula as suas costas. – Acredito que não seremos bem recebidos por lá. 
          Marco virou-se e viu Ana Clara aproximando-se cambaleante. Estava com muitas queimaduras por todo o corpo, as caríssimas roupas não passavam de andrajos e seus cabelos, antes vistosos, eram agora uma parca massa compactada e malcheirosa. 
          – Ana? – Ele engoliu em seco e em menos de um segundo estava a seu lado ajudando-a a se sustentar de pé. – O que aconteceu? 
          – Acabou-se Marco, perdi tudo. Todos morreram. Todos os meus amigos. Dante, Michelle, todos morreram. Eu não devia ter aberto o livro. Foi um truque, uma armação. – Ela ergueu a mão e Marco viu um pequeno livro que ela segurava e um lacre de cera balançando em uma fita, que indicava sua abertura. – Meu clube foi destruído. O Shopping inteiro foi consumido pelas chamas. Não há mais Underwood, Sigma... tudo se foi. 
          Sua voz era fraca e chorosa e ela visivelmente sofria muito com as queimaduras, mas Marco tinha experiência médica, além de ter passado por momentos semelhantes. Sabia que com muito sangue e tempo, ela voltaria a ser como antes; era uma vampira e não iria morrer; a cabeça estava no lugar, bem como seu coração. 
          – Acalme-se. – Disse enquanto ajudava a vampira a sentar-se sobre um tronco a seu lado. – O que destruiu o Shopping? Foi este livro? O que ele contém? Você falou de uma armação, de quem? 
          O vulto passou rapidamente e Marco apenas sentiu uma mão tocando em seu ombro e derrubando-o de costas. Quando olhou novamente para Ana, viu que ela tinha os dois braços estendidos e que o livro não estava mais em suas mãos. Mais à frente, viu onde o exemplar havia parado. Um homem estava de pé, parado e olhando fixamente para eles; em sua mão estava o livro. 
          – Olá Marco. Ana. – Ele moveu a cabeça em um gesto de cumprimento. – Vejo que escapou praticamente ilesa do incidente, minha querida. E você meu caro doutor, sinceramente peço desculpas pelo ocorrido com seu pai, mas eu precisava de um humano para realizar o ritual e pensei comigo: “porque não o pai de meu afilhado?”. Eu imaginei que você não se importaria e ainda se veria livre de seu dilema do “conto ou não conto pro papai?”. 
         – Lucian, seu maldito! – Ela expeliu as palavras por entre os dentes, como se fosse engasgar se não o fizesse. – Agora compreendo. Se você está aqui, ela também deve estar, não é seu verme. 
          – Ela quem? – Perguntou Marco Antônio, colocando-se de pé e avançando contra Lucian. – Você matou meu pai? E agora eu me lembro. Já ouvi essa voz antes, conheço esse sorriso. Você me atacou no beco em Londres. Foi você quem me tornou esse monstro que sou. – Ele ficou furioso e saltou sobre Lucian que ainda mantinha o mesmo sorriso. – Vou matá-lo. 
          Sua trajetória no ar foi interrompida por um forte golpe e ele ouviu o ruído metálico da pá chocando-se contra seu rosto por duas vezes antes de tocar o chão. Quando caiu, uma nova série de golpes se abateu sobre ele com tanta velocidade e força que ele acreditou que não iria sobreviver. Os golpes somente cessaram quando ele se prostrou praticamente morto, a face afundada na terra. 
          – Isa, sua cadela! – Balbuciou Ana Clara, esforçando-se para se mover e sabendo que se não o fizesse seria a próxima vítima daquela pá. – Eu sabia que você estava armando alguma coisa, sua piranha. Por isso eu não conseguia encontrá-la. 
          – Eu estava viajando, minha querida! Fui até a Itália buscar uma parenta de nosso amigo Lucian. – Disse largando a pá e aproximando-se do vampiro, beijando-o na boca. – E ela está aqui, um pouco mais à frente, no meio da plantação. – Ela se esfregava nele como uma gata no cio. – E não se preocupe que aquela bicha degenerada do Albert não percebeu nada! 
          – Boa menina! – Lucian respondeu dando-lhe um outro beijo em retribuição. – Agora pegue os dois e vamos terminar logo o que viemos fazer. 
          Isa como um felino saltou sobre Ana Clara e golpeou sua cabeça contra uma árvore próxima por várias vezes, até que a outra desmaiasse. Depois, segurando Marco e Ana pelos pulsos, arrastou-os até um ponto mais à frente, quase no centro da plantação de laranjas. No local uma clareira se abria, no ponto onde havia um grande bloco de pedra, utilizado para a triagem das frutas. Nesta noite não havia laranjas sobre a rocha, mas sim uma garota adormecida, aparentemente de quinze anos. Ela estava deitada sobre a rocha e encontrava-se beirando a morte pela perda de sangue. 
          – Laura. – Balbuciou Lucian som um meio sorriso em seu rosto, colocando a mão no rosto da garota adormecida. – Aceite isto como um presente. Eu sei que nunca seria minha de outra forma. Sua alma é por demais introspectiva... por isso, vamos trocá-la! 
         Dito isso ele abriu o livro que carregava e gritou o nome de Borkovisk. Em poucos instantes o ar esfriou e um grande pentagrama surgiu no céu, exatamente sobre a cabeça da garota desacordada. De dentro dele uma bruma desceu e a face deformada de Edmund surgiu. 
          – Lucian, os sinais estão feitos na propriedade? Pois bem, que assim o seja! Que Natasha retorne a terra pelo corpo de Laura e que possa honrar minha família por mais uma geração. 
          Um fio de luz desceu do pentagrama e incidiu sobre a cabeça da garota deitada sobre a pedra. Todos puderam ver quando uma espessa fumaça desceu e penetrou no corpo e instantes depois uma outra, mais leve e clara flutuou etérea, deixando o corpo e dirigindo-se as nuvens. 
          – Findado! O inferno me aguarda e o futuro a minha filha. – Falou Edmund quase sorrindo. – Você não tem mais dívida alguma comigo Lucian. A vida de sua sobrinha pela de minha Natasha. – E dito isso o pentagrama se esmaeceu e o rosto de Edmund foi finalmente tragado para o inferno, preço da permuta que fez com o demônio para que sua filha pudesse retornar aos vivos. 
          A garota levantou-se sobre a rocha e delicadamente girou o corpo, descendo dela e ficando de pé. Lucian aproximou-se e abraçou-a fortemente. 
          – Natasha, não é? – Ele sussurrou no ouvido da garota. – Você será a minha Natasha. Toda minha, coisa que Laura nunca poderia ser, não é? – Seu tom era caloroso e emocionado e os olhos estavam marejados. 
          Isa estava possessa de ciúmes, mas fazia parte do acordo e sabia que teria que agüentar. Amava Lucian e desde que se conheceram, soube que ele havia sido destinado para ela. Não teria mais que procurar pelo amor verdadeiro, pois encontrara isso em Lucian. Ajudara Edmund, pois esse lhe explicara que assim que Natasha tomasse o corpo de Laura, iria magoar muito o seu amado e que não ficaria com ele em nenhuma hipótese, ao contrário dos planos de Lucian. Ela teria assim se aproximado mais dele e se livrado de uma vez por todas da sombra de Laura. Torcia para que Natasha o machucasse um pouco, pois assim ele poderia até mesmo matá-la e nada restaria para atrapalhar seu romance, mas não estava preparada para ver aquilo. A visão da mão da garota cruzando o peito de Lucian, o braço coberto de sangue e o coração seguro sendo espremido chocou-a mais do que tudo. Viu como se a cena se passasse com uma lentidão aterradora. O braço sendo puxado de volta pelo buraco, o coração sendo atirado de lado e Lucian escorregando e caindo morto no chão. Seus olhos encontraram incrédulos com os de Ana, depois com os de Marco, ambos de pé a seu lado, igualmente aparvalhados. 
          – Idiota! – Natasha gritou, limpando o sangue da mão em sua própria roupa. – Achou que eu ficaria com você? Pois estava louco! Eu e meu pai já planejamos tudo. O mundo voltará a ser perfeito e ficará livre de sua raça amaldiçoada. – Ela desviou os olhos do vampiro morto e fitou os três que a observavam boquiabertos. – Meu pai sempre desejou destruir todos os vampiros. Ele apenas se uniu a vocês dois para estudar suas fraquezas. Ele fez uma boa barganha com o demônio e eu sou mais forte do que qualquer um de vocês. Vou perseguí-los e eliminar todos da face da terra. O mundo voltará a ser perfeito. Teremos novamente paz e harmonia. Não foi a guerra quem matou a mim e a minha mãe, foram os vampiros famintos que nos levaram a morte quando nos encontraram nos escombros da cidade. 
          Ela rapidamente voou sobre Isa que mal teve tempo de erguer os braços para se proteger. O golpe certeiro com os dois punhos deslocou a cabeça da vampira do pescoço, arremessando-a vários metros a frente. Marco apanhou um galho e avançou contra a criatura, mas foi arremessado contra uma árvore por um forte golpe antes mesmo que pudesse atingi-la. A tentativa de Ana foi igualmente frustrada e ela sentiu quando várias costelas se partiram ao serem golpeadas. Os dois vampiros sentiram que estavam liquidados. Marco em particular não desejava mais lutar e Ana aparentemente não poderia. Ele deitou-se e aguardou pelo fim que há tempos desejava. Aguardou que Natasha esmagasse seu crânio ou arrancasse seu coração, mas o que ouviu a seguir não foi a aproximação dela, mas um ruído familiar de uma máquina. Abriu os olhos e viu quando uma enorme motocicleta negra chocou-se contra a criatura e arrastou-a até colidir com uma árvore e explodir. 
          Tudo se passou muito rápido, mas Marco tinha certeza de ter visto uma sombra ter saltado instantes antes da colisão para uma das laranjeiras. Ele procurava por ela passando os olhos pelas copas das árvores e só se deu conta de que a criatura ainda estava viva quando a viu saindo das chamas e que avançava novamente sobre ele. Quando estava a um passo de alcançá-lo, viu a sombra descer e cair no espaço entre ele e Natasha. O brilho rápido e certeiro do aço subiu e desceu por quatro vezes e a sombra tornou a saltar para a copa das árvores. A criatura berrou quando seus dois braços caíram do corpo ao tentar aparar os intestinos que caiam para fora através dos cortes recebidos. As chamas haviam consumido todas as roupas da criatura e agora se extinguiam e então Marco deparou-se com o olhar de surpresa que a criatura esboçava ao olhar para as partes faltantes de seu corpo fumegante. Parecia que somente naquele momento se conscientizara que era forte, mas ainda assim mortal. Entretanto era tarde demais para isso, pois Marco viu quando a sombra saltou de uma das árvores e caiu atrás dela. O brilho da lâmina cruzou todo o corpo, da cabeça até a virilha e cravou-se no chão, tamanha fora a força empregada no golpe. O corpo da monstruosidade caiu partido em dois e a responsável por aquela cena aterrorizante limitou-se a retirar o cabelo da testa e sorrir. 
          – Valéria Poison, bonitão! Esse é o nome que deve se lembrar em suas orações. Vampiros molengas como você rezam, não rezam? 
          Ele não sabia o que dizer. Limitou-se a balbuciar algo como “obrigado, sim, não”, mas não acreditava que ela houvesse escutado nada realmente. Olhou embasbacado enquanto Valéria apanhava a lâmina e com um salto decepava a mão de Ana que tentava apanhar o livro que estava caído no chão. Ela apanhou tanto o livro quanto a mão de Ana e atirou os dois nas chamas que ainda ardiam na motocicleta despedaçada. 
          – Nada mais de magia por aqui vadia! Se não fosse essa sua mãozinha manicurada ter aberto a porra daquele livro, nada disso teria acontecido. – Aproximou-se de Ana e com dois rápidos puxões arrancou os brincos de brilhantes que ainda resplandeciam em suas orelhas. – E isso fica para que eu arrume outra motocicleta... – e aproximando-se do cadáver de Lucian arrancou o seu relógio de ouro e as abotoaduras – ... e isso é para que eu possa tirar umas férias em Buenos Aires. Algum dos dois se importa? 
          Ana Clara e Marco Antônio rapidamente balançaram a cabeça em negativa e esforçaram-se para sorrir, olhos fixos na lâmina brilhante que ela ainda segurava. Agradeceram a Deus quando Valéria Poison a guardou na bota, enfiou os brincos, o relógio e as abotoaduras nos bolsos da jaqueta de couro e partiu cantarolando “Don’t Let Me Be Misunderstood” enquanto chutava as laranjas que encontrava caídas pelo meio do caminho. 

Fim. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...